Lutar com palavras é a
luta mais vã.
Entretanto lutamos, mal rompe a manhã.
Entretanto lutamos, mal rompe a manhã.
(Carlos Drummond de
Andrade)
Todas as manhãs, ainda antes de
sair da cama, fazia uma lista de palavras que poderiam lhe servir naquele dia.
Primeiro se lembrava de tudo o que deveria fazer, as pessoas que provavelmente
encontraria, os assuntos que tinham sido notícias no dia anterior e que
provavelmente seria uma boa forma de manter uma conversa de ônibus, caso alguém
quisesse diminuir a solidão e a encontrasse ao lado. Pensava em frases de
efeito e frases comuns, em explicações que não daria mas já estavam prontas,
construía orações para os mais diversos motivos.
Sabia que não usaria todas elas.
Sabia também que o dia sempre preparava surpresas e por isso ela teria que
enfrentar acontecimentos e encontros inesperados e isso exigia palavras e
frases que não estavam disponíveis quando ela saíra da cama. Mas ainda assim
era só depois de haver selecionado cada palavra, planejado cada frase, fazendo
um levantamento dos possíveis acontecimentos e das respostas prontas para eles
que ela conseguia encarar um novo dia.
Conseguia lidar bem com o
imprevisto porque aprendera a usar os silêncios para relembrar as palavras que
já havia usado, ou que tinha preparado para um outro dia. A única coisa que não
suportava quando algumas das palavras que ela tinha tão habilmente encontrado e
tão delicadamente tecido em frases perfeitas escapavam e tudo o que conseguia
dizer era um balbucio sem graça, um quase nada que não exprimia nem um terço de
tudo aquilo que ela tinha a dizer; mas isso era tão raro que quase todos os
dias, antes de dormir, podia pensar que apesar de tudo tinha ganho a luta com
as palavras mais uma vez. Ela dominava as palavras, afinal de contas; sentia
que podia dormir tranquila.
Mas um dia aconteceu uma coisa
surpreendente. Quando dormia sonhou pela primeira vez em muito tempo e em seu
sonho as palavras ganham vida e força dentro de si e começavam uma revolução,
libertando-se das amarras que ela lhes impunha todos os dias.
Acordou sobressaltada. Mas,
pensando se tratar só de um sonho, respirou fundo, fechou seus olhos e começou
seu planejamento de palavras e frases e respostas prontas. Levantou-se e já na
primeira vez que falou percebeu que as palavras se ordenavam da forma que elas
queriam e, apesar de serem as mesmas que ela tinha planejado, saiam cada uma a
seu tempo, embaralhadas. Ao longo do dia isso foi ficando cada vez mais intenso;
cada vez que falava percebia que as palavras mais simples se misturavam e
dançavam formando frases tão tocantes que até ela se emocionava. E no meio de
desconstruções e reencontros, de palavras comuns e outras que ela parecia ter
inventado, foi sentindo que as palavras tomavam conta dela.
No começo teve medo. Como assim,
não ter autoridade sobre as palavras? Ter as palavras sob controle era como ter
o mundo organizado, era como se ter domínio de si mesma; perder as rédeas das
palavras que dizia era como perder o próprio centro.
Mas não conseguia retomar o
controle, principalmente porque as palavras assim, soltas, falavam muito mais
sobre ela e perder o controle parecia ser como ganhar milhares de novos
caminhos. Por isso, ainda com um pouco de medo, deixou-se inundar por elas e
percebeu que quando ela libertava as palavras ela se transformava em poesia.
Percebeu que ela não dominava as
palavras; mas as palavras também não a dominavam. Ao falar sem ter planejado,
ou diferente daquilo que supunha ser o certo, dizia aquilo que todo o seu ser
queria. Elas saiam com emoção, com vontade, com um brilho que não tinham antes.
As palavras dançavam e tocavam as pessoas, que sem perceber começavam a brincar
com as palavras da mesma forma que ela fazia.
E foi assim,
sem saber o que isso significa, que ela se transformou em uma encantadora de
palavras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário