Passei muito tempo pensando se escrevia ou não aqui sobre o que passamos na manifestação - são tantos relatos, sei que nem passei pela pior parte, li, ouvi e vi verdadeiros absurdos. Sei também que já tem gente achando que está se falando muito nisso - já não é novidade e num mundo em que notícia boa é só a que aconteceu nos últimos segundos, falar sobre o que aconteceu na quinta-feira parece notícia perdida. Talvez seja. Mas sinto um nó na garganta cada vez que lembro de tudo o que aconteceu - e não consigo esquecer; por isso, resolvi escrever para exorcizar, contar para poder (tentar) esquecer.
O fato é que eu estava na manifestação quinta. Fui com uns amigos e antes de chegar vimos umas quatro ou cinco viaturas (não sei se é exatamente esse o nome) cheias de cavalos; a cavalaria já estava a postos antes de começar o movimento. Mas quando chegamos à concentração, em frente ao Teatro Municipal, fiquei encantada com a cena: era muita gente, muitas e criativas manifestações, placas, cartazes, máscaras. Logo no começo começaram a circular ‘dicas’ para o caso de ter confronto com a polícia: eram todas pacíficas, como usar vinagre para auxiliar a respirar em caso de contato com o gás, não ficar isolado, em último caso juntar e proteger as partes mais sensíveis do corpo, formar agrupamentos, amolecer o corpo em caso de ser pego pela polícia, marcar pontos de encontro caso se perdesse do grupo com o qual começou a manifestação, tentar manter a calma. Portanto sabíamos que poderia haver um confronto; mas era uma manifestação pacífica, legítima – e legal –, talvez por isso nem nos preocupamos tanto; mesmo quando víamos quatro helicópteros acima da gente. Nos preocupávamos em ficar onde considerávamos ser 'estratégicos': no meio do grupo, porque os confrontos normalmente é no começo e no fim; não ficar sozinho, pensar em 'rotas de fuga'. Falávamos sobre isso mais como garantia; sabíamos que era possível mas não poderíamos ter a menor noção do que estava para acontecer.
Começamos a andar, a manifestação estava tranquila. Gritávamos palavras de ordem contra o aumento, chamávamos à rua aqueles que estavam olhando, estava uma manifestação realmente encantadora. Em dado momento passou correndo um grupo do batalhão de choque; não fizeram nada, nós os vaiamos e logo começamos a falar algo como ‘você também é explorado’. Passaram eles, continuamos nós. Em dado momento nós paramos; já tínhamos feito isso uns metros antes, pra dar tempo de juntar todo mundo num bloco só, mas dessa vez tinha alguma coisa diferente. De repente, um barulho muito alto e de longe vimos a cortina de gás se formando logo a frente. As pessoas começaram a correr, não sabíamos o que estava acontecendo, começamos a ouvir – e repetir – pra que se acalmassem e continuássemos; o gás tinha chegado até a gente, mas dessa primeira vez não estava muito forte, talvez pela distância, mas ainda assim foi difícil aguentar. Ardia muito o olho, amarramos lenços e encharcamos com vinagre para poder conseguir respirar melhor.
Estávamos na rua em frente à praça Roosevelt; começamos a ir pra praça, depois tentamos voltar às ruas, algumas pessoas sugeriram que a gente abaixasse para demonstrar que era um movimento pacífico, que não estávamos enfrentando ninguém, mas logo vimos que isso não seria possível: depois dessa primeira, vieram outras – talvez três ou quatro – e começamos a correr. Em partes porque não conheço bem São Paulo, em partes porque ficou tudo muito confuso depois desse momento, não sei dizer exatamente em que ordem aconteceram as próximas coisas, por onde fomos, o que acontecia. Sei que corríamos, por um momento paramos em frente a um prédio mas logo achamos melhor continuar correndo, seguimos algumas pessoas, vimos que tentavam direcionar para tentar (re)unir o movimento que obviamente estava se separando.
Logo depois disso, teve um tempo de relativa calmaria; conseguimos respirar um pouco e continuar o movimento e agora juntávamos às nossas falas o pedido de ‘sem violência’. E então começou de novo; gás, bombas de efeito moral - que de moral tem muito pouco, o meu corpo inteiro enrijecia cada vez que ouvia o barulho - pessoas gritando, chorando, informações desconexas. Um helicóptero, com um daqueles faróis, passava pelas ruas em que tinham manifestantes – acredito que para que a polícia pudesse se organizar para cercar a gente; e mais bombas, ou gritos avisando que polícia estava subindo em uma ou outra direção. Por um tempo ficamos nesse movimento: conseguíamos retomar a manifestação, mas logo ouvíamos bombas, víamos o gás perto, corríamos, tentávamos nos proteger, tentávamos ficar juntos, tentávamos. Jogavam muitas bombas, não sabíamos exatamente em que direção; em dado momento percebemos que eram em todas as direções, porque corremos para um lado e um grupo corria em direção a gente; pensamos em parar atrás de um carro que estava estacionado, mas nos avisaram que seria muito pior porque a polícia estava prendendo indiscriminadamente (e depois também ouvimos muitos relatos de que não se esqueciam de bater sem dó antes disso); era muita gente tentando correr, mas sem saber exatamente pra onde. Lembro de ver uma menina com uma flor no cabelo e algumas na mão, chorando muito, e pensar ‘eu também achei que seria mais fácil’; a polícia não dispersava mais, ela estava encurralando.
Conseguimos entrar em uma rua que tinha um pouco menos de movimento, mas ainda tínhamos que correr muito. Atrás da gente tinha um batalhão subindo, muito hábeis na arte de desesperar aparentando uma falsa calma enquanto batiam com os cassetetes nos escudos; na frente, uma cortina de fumaça, que enfrentamos sem pensar. Corremos, não sei dizer o quanto. Já estávamos em uma rua mais calma, mas ouvíamos uma bomba e corríamos no que imaginávamos ser a direção contrária. Em algum momento caí – não sei correr, estava com uma sapatilha, estava cansada – e alguém me ajudou a levantar. Estava cansada, com medo, perdida, humilhada por ser tratada daquela forma. Viramos em outra rua, acalmou um pouco, me perguntaram se eu estava bem, eu honestamente não sabia dizer. Mais bombas, corremos mais, estávamos em um grupo de 5 pessoas e eu só conseguia ver outras três. Tentei procurar a quinta pessoa, acabei me afastando dos outros, outra bomba, não sabia pra onde ir, corria vendo meu grupo à frente. Viramos uma rua, os vi entrando em uma padaria; entrei e ficamos lá por um tempo. Ainda ouvíamos as bombas e sentia uma revolta inimaginável ao ouvir o Datena dizer que “a manifestação começou bem, mas virou uma baderna” como se fosse culpa nossa, dos manifestantes. Sim, virou uma baderna, porque não sabíamos o que fazer no meio de tamanha violência! Foi desmedido, cruel, absurdo. Mas muito pior do que isso é que não estávamos os cinco; em alguma rua, impossível saber àquele momento exatamente onde, devíamos ter ido em direções contrárias. E agora nossa maior preocupação era achar o menino, que não atendia ao telefone nem respondia às mensagens; só conseguiríamos ter notícias dele muito tempo depois, e até lá era um medo dele ter sido preso, de ter apanhado, de sei lá o que poderia ter acontecido.
Eu não cheguei até o que aparentemente foi o pior, que foi na paulista. Não conseguimos chegar lá e como estávamos em um grupo pequeno seriamos ‘presas fáceis’ – estavam nos tratando como animais e de alguma forma estávamos concordando com eles.
Na padaria havia outras pessoas, trocávamos notícias que recebíamos por mensagens ou víamos na internet: não vão para o metrô, não andem em grupos, a polícia ainda tá parando, se arrumem antes de sair daqui. Enquanto íamos embora, assustávamos cada vez que víamos um policial; cuidávamos os helicópteros para ter certeza que não estávamos indo para um caminho que pudesse ainda ter muita polícia; íamos em grupos pequenos para tentar não chamar a atenção.
Ainda agora, pensando em tudo o que passou, não consigo assimilar direito; parece muito surreal. Mas não preciso de muito esforço para lembrar que havia muita solidariedade no meio de tamanha truculência. Pessoas distribuíam vinagre, ajudavam, davam informações, levantavam, não deixavam às outras sozinhas. Víamos um misto de preocupação consigo e com os outros, nos juntávamos sem perguntas ou ressalvas. Era muito pouco o que podíamos fazer perante tamanha violência policial; mas o suficiente para ter a certeza de que era um movimento legitimo, pacífico, feito com pessoas que estavam lutando pelos seus direitos.
Desde ontem li uma série de outros relatos e honestamente não consigo imaginar o desespero de quem chegou a ser preso, que apanhou, que levou tiros. Mas o que mais me indigna são as pessoas que de uma forma ou de outra tentam invalidar o protesto - chamam-nos de 'massa de manobra', dizem que somos 'baderneiros', 'selvagens', que é um 'absurdo'. Por que? Temos que aguentar tudo quietos?! Estávamos certos em apanhar, ter que fugir, ter todos os direitos ignorados? Não são R$0,20, é ter que todo santo dia aguentar um transito impossível, um serviço de péssima qualidade, ser tratado como animal na hora de enfrentar os transportes lotados, que quebram, que são insuficientes. Isso pra ficar só na questão do transporte que, sabemos, é a pontinha do iceberg de tudo o que acontece com a maioria de nós todos os dias, de todas as explorações, todas as sacanagens, tudo o que temos que engolir.
Quando penso se vou no próximo, sinto um medo verdadeiro e uma parte dentro de mim diz: não. Não consigo, não quero correr o risco de ter que passar por aquilo de novo. Mas uma parte muito maior diz: se você não for, você vai dizer que estava errada e eles certos em fazer aquele ataque.
E eles não estavam certos, em momento nenhum.