sábado, 15 de junho de 2013

Sobre o manifesto do dia 13/06

Passei muito tempo pensando se escrevia ou não aqui sobre o que passamos na manifestação - são tantos relatos, sei que nem passei pela pior parte, li, ouvi e vi verdadeiros absurdos. Sei também que já tem gente achando que está se falando muito nisso - já não é novidade e num mundo em que notícia boa é só a que aconteceu nos últimos segundos, falar sobre o que aconteceu na quinta-feira parece notícia perdida. Talvez seja. Mas  sinto um nó na garganta cada vez que lembro de tudo o que aconteceu - e não consigo esquecer; por isso, resolvi escrever para exorcizar, contar para poder (tentar) esquecer. 
O fato é que eu estava na manifestação quinta. Fui com uns amigos e antes de chegar vimos umas quatro ou cinco viaturas (não sei se é exatamente esse o nome) cheias de cavalos; a cavalaria já estava a postos antes de começar o movimento. Mas quando chegamos à concentração, em frente ao Teatro Municipal, fiquei encantada com a cena: era muita gente, muitas e criativas manifestações, placas, cartazes, máscaras. Logo no começo começaram a circular ‘dicas’ para o caso de ter confronto com a polícia: eram todas pacíficas, como usar vinagre para auxiliar a respirar em caso de contato com o gás, não ficar isolado, em último caso juntar e proteger as partes mais sensíveis do corpo, formar agrupamentos, amolecer o corpo em caso de ser pego pela polícia, marcar pontos de encontro caso se perdesse do grupo com o qual começou a manifestação, tentar manter a calma. Portanto sabíamos que poderia haver um confronto; mas era uma manifestação pacífica, legítima – e legal –,  talvez por isso nem nos preocupamos tanto; mesmo quando víamos quatro helicópteros acima da gente. Nos preocupávamos em ficar onde considerávamos ser 'estratégicos': no meio do grupo, porque os confrontos normalmente é no começo e no fim; não ficar sozinho, pensar em 'rotas de fuga'. Falávamos sobre isso mais como garantia; sabíamos que era possível mas não poderíamos ter a menor noção do que estava para acontecer.  

Começamos a andar, a manifestação estava tranquila. Gritávamos palavras de ordem contra o aumento, chamávamos à rua aqueles que estavam olhando, estava uma manifestação realmente encantadora. Em dado momento passou correndo um grupo do batalhão de choque; não fizeram nada, nós os vaiamos e logo começamos a falar algo como ‘você também é explorado’. Passaram eles, continuamos nós. Em dado momento nós paramos; já tínhamos feito isso uns metros antes, pra dar tempo de juntar todo mundo num bloco só, mas dessa vez tinha alguma coisa diferente. De repente, um barulho muito alto e de longe vimos a cortina de gás se formando logo a frente. As pessoas começaram a correr, não sabíamos o que estava acontecendo, começamos a ouvir – e repetir – pra que se acalmassem e continuássemos; o gás tinha chegado até a gente, mas dessa primeira vez não estava muito forte, talvez pela distância, mas ainda assim foi difícil aguentar. Ardia muito o olho, amarramos lenços e encharcamos com vinagre para poder conseguir respirar melhor. 
Estávamos na rua em frente à praça Roosevelt; começamos a ir pra praça, depois tentamos voltar às ruas, algumas pessoas sugeriram que a gente abaixasse para demonstrar que era um movimento pacífico, que não estávamos enfrentando ninguém, mas logo vimos que isso não seria possível: depois dessa primeira, vieram outras – talvez três ou quatro – e começamos a correr. Em partes porque não conheço bem São Paulo, em partes porque ficou tudo muito confuso depois desse momento, não sei dizer exatamente em que ordem aconteceram as próximas coisas, por onde fomos, o que acontecia. Sei que corríamos, por um momento paramos em frente a um prédio mas logo achamos melhor continuar correndo, seguimos algumas pessoas, vimos que tentavam direcionar para tentar (re)unir o movimento que obviamente estava se separando.
Logo depois disso, teve um tempo de relativa calmaria; conseguimos respirar um pouco e continuar o movimento e agora juntávamos às nossas falas o pedido de ‘sem violência’. E então começou de novo; gás, bombas de efeito moral - que de moral tem muito pouco, o meu corpo inteiro enrijecia cada vez que ouvia o barulho - pessoas gritando, chorando, informações desconexas. Um helicóptero, com um daqueles faróis, passava pelas ruas em que tinham manifestantes – acredito que para que a polícia pudesse se organizar para cercar a gente; e  mais bombas, ou gritos avisando que polícia estava subindo em uma ou outra direção. Por um tempo ficamos nesse movimento: conseguíamos retomar a manifestação, mas logo ouvíamos bombas, víamos o gás perto, corríamos, tentávamos nos proteger, tentávamos ficar juntos, tentávamos. Jogavam muitas bombas, não sabíamos exatamente em que direção; em dado momento percebemos que eram em todas as direções, porque corremos para um lado e um grupo corria em direção a gente; pensamos em parar atrás de um carro que estava estacionado, mas nos avisaram que seria muito pior porque a polícia estava prendendo indiscriminadamente (e depois também ouvimos muitos relatos de que não se esqueciam de bater sem dó antes disso);  era muita gente tentando correr, mas sem saber exatamente pra onde. Lembro de ver uma menina com uma flor no cabelo e algumas na mão, chorando muito, e pensar ‘eu também achei que seria mais fácil’; a polícia não dispersava mais, ela estava encurralando. 
Conseguimos entrar em uma rua que tinha um pouco menos de movimento, mas ainda tínhamos que correr muito. Atrás da gente tinha um batalhão subindo, muito hábeis na arte de desesperar aparentando uma falsa calma enquanto batiam com os cassetetes nos escudos; na frente, uma cortina de fumaça, que enfrentamos sem pensar. Corremos, não sei dizer o quanto. Já estávamos em uma rua mais calma, mas ouvíamos uma bomba e corríamos no que imaginávamos ser a direção contrária. Em algum momento caí – não sei correr, estava com uma sapatilha, estava cansada – e alguém me ajudou a levantar. Estava cansada, com medo, perdida, humilhada por ser tratada daquela forma. Viramos em outra rua, acalmou um pouco, me perguntaram se eu estava bem, eu honestamente não sabia dizer. Mais bombas, corremos mais, estávamos em um grupo de 5 pessoas e eu só conseguia ver outras três. Tentei procurar a quinta pessoa, acabei me afastando dos outros, outra bomba, não sabia pra onde ir, corria vendo meu grupo à frente. Viramos uma rua, os vi entrando em uma padaria; entrei e ficamos lá por um tempo. Ainda ouvíamos as bombas e sentia uma revolta inimaginável ao ouvir o Datena dizer que “a manifestação começou bem, mas virou uma baderna” como se fosse culpa nossa, dos manifestantes. Sim, virou uma baderna, porque não sabíamos o que fazer no meio de tamanha violência! Foi desmedido, cruel, absurdo. Mas muito pior do que isso é que não estávamos os cinco; em alguma rua, impossível saber àquele momento exatamente onde, devíamos ter ido em direções contrárias. E agora nossa maior preocupação era achar o menino, que não atendia ao telefone nem respondia às mensagens; só conseguiríamos ter notícias dele muito tempo depois, e até lá era um medo dele ter sido preso, de ter apanhado, de sei lá o que poderia ter acontecido. 
Eu não cheguei até o que aparentemente foi o pior, que foi na paulista. Não conseguimos chegar lá e como estávamos em um grupo pequeno seriamos ‘presas fáceis’ – estavam nos tratando como animais e de alguma forma estávamos concordando com eles. 
Na padaria havia outras pessoas, trocávamos notícias que recebíamos por mensagens ou víamos na internet: não vão para o metrô, não andem em grupos, a polícia ainda tá parando, se arrumem antes de sair daqui. Enquanto íamos embora, assustávamos cada vez que víamos um policial; cuidávamos os helicópteros para ter certeza que não estávamos indo para um caminho que pudesse ainda ter muita polícia; íamos em grupos pequenos para tentar não chamar a atenção.
Ainda agora, pensando em tudo o que passou, não consigo assimilar direito; parece muito surreal. Mas não preciso de muito esforço para lembrar que havia muita solidariedade no meio de tamanha truculência. Pessoas distribuíam vinagre, ajudavam, davam informações, levantavam, não deixavam às outras sozinhas. Víamos um misto de preocupação consigo e com os outros, nos juntávamos sem perguntas ou ressalvas. Era muito pouco o que podíamos fazer perante tamanha violência policial; mas o suficiente para ter a certeza de que era um movimento legitimo, pacífico, feito com pessoas que estavam lutando pelos seus direitos.
Desde ontem li uma série de outros relatos e honestamente não consigo imaginar o desespero de quem chegou a ser preso, que apanhou, que levou tiros. Mas o que mais me indigna são as pessoas que de uma forma ou de outra tentam invalidar o protesto - chamam-nos de 'massa de manobra', dizem que somos 'baderneiros', 'selvagens', que é um 'absurdo'. Por que? Temos que aguentar tudo quietos?! Estávamos certos em apanhar, ter que fugir, ter todos os direitos ignorados? Não são R$0,20, é ter que todo santo dia aguentar um transito impossível, um serviço de péssima qualidade, ser tratado como animal na hora de enfrentar os transportes lotados, que quebram, que são insuficientes. Isso pra ficar só na questão do transporte que, sabemos, é a pontinha do iceberg de tudo o que acontece com a maioria de nós todos os dias, de todas as explorações, todas as sacanagens, tudo o que temos que engolir.  
Quando penso se vou no próximo, sinto um medo verdadeiro e uma parte dentro de mim diz: não. Não consigo, não quero correr o risco de ter que passar por aquilo de novo. Mas uma parte muito maior diz: se você não for, você vai dizer que estava errada e eles certos em fazer aquele ataque.
E eles não estavam certos, em momento nenhum.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Eu não briguei com Deus


               Quando eu era criança minha família frequentava a Igreja Católica. Mas lá em casa ser católico não era (só) dizer-se católico e ir à missa aos domingos: meus pais estudavam muito sobre religião, participavam de pastoral, faziam palestras em encontros de casais e todas essas coisas. Eu e meus irmãos sempre íamos juntos a esses movimentos, eles sempre nos explicavam como funciona a Igreja: éramos praticamente ratos de sacristia. Tínhamos uma coleção de livros infantis chamada “Alice no país da Bíblia” para realmente conhecer as histórias da bíblia e, mais do que isso, para entender todo o significado da expressão “Sou Católico”. Meus pais – particularmente minha mãe – eram especialmente inclinados à teologia da libertação e por isso fui educada nos pressupostos dessa Teologia. Nada era “é assim e pronto”, a gente sempre aprendeu a questionar e a buscar respostas dentro da própria religião. “A Igreja é santa e pecadora” – dizia minha mãe – “porque ela é feita de homens que são pecadores e de Deus, que os perdoa apesar de tudo”. Minha família, embora não seja toda ela católica, é muito religiosa e as crenças (e principalmente as atitudes frente a elas) são sempre muito presentes.


Aprendi que o verdadeiro sentido de ser cristão é doar-se. Aprendi que é necessário “fazer o bem sempre, fazer o bem a todos; o mal nunca, a ninguém”. Cresci ouvindo (e mais que isso) me orientando em “pra hoje tem, pra amanhã Deus dá”, “se Deus quiser”, “vá/fique com Deus”, “graças a Deus”, “durma com os anjos” e coisas do gênero. Isso para mim era tão parte de mim que eu cheguei a cogitar ser freira. Conheço a bíblia, sei responder algumas de suas contradições, conheço os ritos e os mistérios da Igreja. Sei as respostas e as orações, sei dezenas de músicas religiosas, tenho na ponta da língua algumas passagens bíblicas.

Por isso, quando eu falo que sou ateia não é porque eu “não conheço Deus”.

Sim, sou ateia. É mais do que não tenho religião, é que realmente não acredito em um Deus onipotente, oniciente e onipresente. O Dawkins tem uma espécie de tabela que iria entre o que tem absoluta certeza da existência divina até a absoluta certeza de sua inexistência (ou entre o 100% religioso até o 100% ateu). Eu me situo mais perto do último, mas não chego a dizer que sou 100% ateia simplesmente porque sou cientista (e por isso muito mais cartesiana do que gostaria) o que faz com que eu mantenha sempre a dúvida como possibilidade – pode ser que deus existe, mas não existem provas suficientes para que eu aceite isso como uma realidade e que oriente minha vida por isso. “Isso é a fé”, poderiam dizer alguns que acreditam. Concordo, a fé é exatamente isso: acreditar apesar das evidências, acreditar nos mistérios; mas entendo que a vida é muito mais fácil quando conhecemos a realidade para além dos mistérios e muito verdadeira quando abrimos mão das respostas prontas e construímos uma forma diferente de estar no mundo. Acho muito improvável que esse deus religioso exista. Tenho gostado um pouco do Deus de Espinosa simplesmente porque nele o nome Deus não diz nada do que usualmente pensamos, não é um deus com uma consciência própria: é uma substância que não está fora da natureza, mas é a própria natureza;

Já me disseram coisas do tipo “ah, eu entendo. A morte da sua mãe foi difícil, Deus te perdoa por esse momento de fraqueza”. Mas não, eu não briguei com Deus. Nessa época eu até queria acreditar; na verdade eu demorei um tempo para assumir para mim mesma que era ateia porque isso implicava em milhares de coisas com as quais eu ainda não conseguiria lidar. Hoje eu penso que a vida é muito mais importante que a morte, simplesmente porque é só isso que temos. Eu disse só?! É tudo isso que temos! São todas as possibilidades, tudo o que existe de incrível, de tocante, de profundo, de intenso. Eu nunca vou aceitar que o objetivo da vida é esse encontro derradeiro com a morte e o além-vida; a vida é potência, é expansão. É o que fica nos outros, o que fica de nosso no mundo depois que a morte nos leva. É o que nos marca antes da morte chegar, os encontros (e desencontros), são os sonhos, os planos, os desejos, os medos, as coragens. São também as lágrimas e as quedas, tanto quanto os suportes e às vezes que a gente consegue se levantar. Eu não briguei com Deus, eu fiz as pazes com o mundo e comigo mesma. Eu não o amaldiçoo ou o odeio, eu simplesmente não acredito. E também não tenho medo de ir para o inferno porque, olha só, não acredito nisso também. Não acredito em benefícios ou punições eternas porque acredito apenas na eternidade do instante, uma coisa que não tem quase nada a ver com tempo – principalmente com o tempo depois da minha morte.

Eu mantenho algumas tradições. Comemoro o natal – inclusive com enfeites na casa, que adoro. Faço bacalhau na sexta-feira santa. Sinto-me bem em Igrejas, porque é um ambiente que lembra minha infância e há poucas coisas que são tão acalentadoras quanto estar em um lugar que te remete a uma época em que as coisas eram tão mais fáceis. Por mera força do hábito digo “graças a Deus”, embora já consiga trocar o “vá com Deus” por “se cuida” ou coisa do tipo. Tenho um amigo que diz que eu saí do cristianismo, mas ele não saiu de mim: em partes ele tem razão. Ainda carrego algumas culpas desnecessárias e a cada dia tento deixar isso para trás. Mas também foi por meio da Teologia da Libertação que aprendi desde cedo sobre a necessidade de transformação desta realidade, e também tenho alguns traços e formas de ver a vida e de me relacionar com o outro que talvez venham da religião e que não quero abrir mão; ainda penso, por exemplo, que “fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas”. 

Não acordei um dia e disse “ah, cansei de brincar disso, agora vou ser ateia”. Muito menos sou porque é moda, porque meus amigos são, porque Marx e Espinosa dizem que a religião é ruim. Sou depois de muita reflexão, muita dúvida, muitas conversas com pessoas que acreditam e com pessoas que não acreditam. Eu não acho que sou superior a quem acredita em Deus ou tem uma religião. Eu não sou superior a ninguém, mas também não admito que alguém se diga superior a mim. Odeio – já odiava quando era religiosa – gente que diz que “ateu é à toa” porque acho abominável julgar alguém com base em apenas em um aspecto da vida dela (olha só, talvez isso seja também um resquício da religião em mim: só Deus – dizem os religiosos, embora muito poucos o façam – tem o direito de julgar). 

Eu poderia passar páginas dizendo o porquê sou ateia e justificando essa minha posição, até porque não foi uma decisão que tomei da noite para o dia. Mas resumindo, eu deixei de acreditar porque as respostas que vêm com essa crença não me são mais suficientes. Então, é isso: eu não briguei com Deus, até porque não teria o menor sentido brigar com alguma coisa que eu não acredito que exista.

domingo, 7 de abril de 2013

A encantadora de palavras



Lutar com palavras é a luta mais vã.
Entretanto lutamos, mal rompe a manhã.
(Carlos Drummond de Andrade)

Todas as manhãs, ainda antes de sair da cama, fazia uma lista de palavras que poderiam lhe servir naquele dia. Primeiro se lembrava de tudo o que deveria fazer, as pessoas que provavelmente encontraria, os assuntos que tinham sido notícias no dia anterior e que provavelmente seria uma boa forma de manter uma conversa de ônibus, caso alguém quisesse diminuir a solidão e a encontrasse ao lado. Pensava em frases de efeito e frases comuns, em explicações que não daria mas já estavam prontas, construía orações para os mais diversos motivos.
Sabia que não usaria todas elas. Sabia também que o dia sempre preparava surpresas e por isso ela teria que enfrentar acontecimentos e encontros inesperados e isso exigia palavras e frases que não estavam disponíveis quando ela saíra da cama. Mas ainda assim era só depois de haver selecionado cada palavra, planejado cada frase, fazendo um levantamento dos possíveis acontecimentos e das respostas prontas para eles que ela conseguia encarar um novo dia.
Conseguia lidar bem com o imprevisto porque aprendera a usar os silêncios para relembrar as palavras que já havia usado, ou que tinha preparado para um outro dia. A única coisa que não suportava quando algumas das palavras que ela tinha tão habilmente encontrado e tão delicadamente tecido em frases perfeitas escapavam e tudo o que conseguia dizer era um balbucio sem graça, um quase nada que não exprimia nem um terço de tudo aquilo que ela tinha a dizer; mas isso era tão raro que quase todos os dias, antes de dormir, podia pensar que apesar de tudo tinha ganho a luta com as palavras mais uma vez. Ela dominava as palavras, afinal de contas; sentia que podia dormir tranquila.
Mas um dia aconteceu uma coisa surpreendente. Quando dormia sonhou pela primeira vez em muito tempo e em seu sonho as palavras ganham vida e força dentro de si e começavam uma revolução, libertando-se das amarras que ela lhes impunha todos os dias.
Acordou sobressaltada. Mas, pensando se tratar só de um sonho, respirou fundo, fechou seus olhos e começou seu planejamento de palavras e frases e respostas prontas. Levantou-se e já na primeira vez que falou percebeu que as palavras se ordenavam da forma que elas queriam e, apesar de serem as mesmas que ela tinha planejado, saiam cada uma a seu tempo, embaralhadas. Ao longo do dia isso foi ficando cada vez mais intenso; cada vez que falava percebia que as palavras mais simples se misturavam e dançavam formando frases tão tocantes que até ela se emocionava. E no meio de desconstruções e reencontros, de palavras comuns e outras que ela parecia ter inventado, foi sentindo que as palavras tomavam conta dela.
No começo teve medo. Como assim, não ter autoridade sobre as palavras? Ter as palavras sob controle era como ter o mundo organizado, era como se ter domínio de si mesma; perder as rédeas das palavras que dizia era como perder o próprio centro.
Mas não conseguia retomar o controle, principalmente porque as palavras assim, soltas, falavam muito mais sobre ela e perder o controle parecia ser como ganhar milhares de novos caminhos. Por isso, ainda com um pouco de medo, deixou-se inundar por elas e percebeu que quando ela libertava as palavras ela se transformava em poesia.
Percebeu que ela não dominava as palavras; mas as palavras também não a dominavam. Ao falar sem ter planejado, ou diferente daquilo que supunha ser o certo, dizia aquilo que todo o seu ser queria. Elas saiam com emoção, com vontade, com um brilho que não tinham antes. As palavras dançavam e tocavam as pessoas, que sem perceber começavam a brincar com as palavras da mesma forma que ela fazia.
E foi assim, sem saber o que isso significa, que ela se transformou em uma encantadora de palavras.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Três pequenas histórias de amor que terminaram antes de começar (e uma que já tinha passado da hora...)

Acontece que eu sou muito mais Caetano e você prefere o Chico, baby. Somos puro rock’in’roll, mas você insiste no melódico britânico enquanto eu fico com a dureza do americano. Você gosta do jazz cantado e eu acho que a beleza está nos arranjos improvisados, sempre atrapalhados pela voz, seja de quem for. Você gosta da literatura fantástica de Márquez, e eu fico com a dilacerante realidade de Llosa. Seus poemas são de Vinícius e os meus de Quintana. Concordamos com Neruda; mas eu pelos poemas de amor e canções desesperadas, você pela crítica ritmada da canção da América.
Olhando de fora somos iguais. Mas só nós sabemos como é difícil se fazer entender.

***

Quando você acordar, não se esqueça de pegar suas roupas e também as coisas que ficaram na sala. Se puder, leve até seu cheiro. Tente não deixar seu perfume esparramado pela casa, me lembrando de tudo o que aconteceu, do que dissemos, do que sentimos. Não gaste meus batons com recados melosos e difíceis de limpar no espelho, nem esqueça propositalmente algum objeto que servirá como uma boa desculpa. Não deixe bilhetes, não retire nenhuma flor do lugar como se as deixasse para mim: as flores que tem na casa já são todas minhas, não preciso recebê-las novamente; tampouco quero novas, minha casa não é um cemitério para ter tantas flores juntas. Se gostou dessa noite guarde-a com carinho num canto quente do seu coração. Se não gostou será mais fácil, esqueça-a ou pense nela com um desdém de quem nem se lembra exatamente do que aconteceu. Não cumpra as promessas de me ligar, nem leve a sério as juras ditas e ouvidas, foram apenas força do hábito.
Faça tudo o que eu peço e não precisaremos perder nosso tempo com decisões e angústias. Faça isso porque me apaixono muito fácil. E não posso correr esse risco agora.


***

Do baú de palavras guardado em seu corpo, ela sempre escolhia aquelas que achava que iam lhe agradar mais. Eram sempre palavras doces, cuidadosamente organizadas, e pensadas para que ele se deliciasse ao ouvir. Limpava-as, tirava as arestas, arrumava os detalhes. Evitava os detalhes por achá-los tristes; valia-se dos adjetivos por tomá-los como coloridos. Escondia em cada palavra um segredo: um sorriso que as inundava, deixava-as mais brilhante, mais leves. Caprichava nas entrelinhas, nos duplos sentidos, nas reticências... adorava as reticências porque elas deixam tudo aberto, mil possibilidades, uma melodia à espera de qualquer canção.
Era tudo tão pensado, tão planejado, tão escolhido e deixava tantas possibilidades! Ela só não sabia que ele ficava apenas com o que havia sido realmente escrito. Ele via as palavras duras, nuas, secas.
Ele via as palavras sem nenhum dos sentimentos que desejava encontrar.


***

Tenho a impressão que te vi um dia desses. Você estava mais magro, e com aquele mesmo ar distante de quem nunca está junto com o próprio corpo. Tinha o mesmo cabelo preto (com o princípio de calvície que você tanto odeia), o mesmo porte atlético, a mesma mania de parar com as mãos cruzadas atrás do corpo. Apesar de tanto tempo, apesar de ser um lugar tão diferente, aquela cena parecia a repetição de tantas cenas parecidas que representamos naquela época de encontros casuais. Quando te vi percebi que era tudo muito igual ao que sempre tinha sido: eu e você caminhando, um em direção ao outro; você distraído, eu pensando, você olhando pra baixo, eu olhando pra dentro, algumas pessoas que não importavam em volta, a casualidade, enfim, tudo. A única coisa diferente naquele momento era eu. Eu que não ansiava mais por aquele encontro e que não senti meu coração disparar quando te vi.
Naqueles longos segundos da eminência do encontro pensei no que dizer, no que fazer, pensei até no que devia pensar. E foi num suspiro de certeza que percebi que o melhor a fazer era dobrar a esquina e fazer você passar pelas minhas costas sem notar que eu tinha cruzado seu caminho.  
Tem algumas coincidências que a gente não pode correr o risco de querer chamar de destino