quinta-feira, 5 de março de 2015

Não vou ao seu enterro, suave amiga

Quando a Cecília Meireles morreu, o Vinicius de Moraes escreveu pra ela uma crônica que se chama Suave Amiga. Ele começa a crônica dizendo “Não fui ao seu enterro, suave amiga”. Reli a crônica faz alguns dias e talvez por isso lembrei dessa frase e, com uma pequena alteração, passei o dia inteiro pensando e repetindo ela.

Não vou ao seu enterro, suave amiga.

Ontem, quase meia-noite no horário de Campo Grande, em torno das 5h da manhã aqui, minha tia morreu depois de uma longa internação – foram mais de três meses, a maior parte do tempo no UTI.

Na crônica do Vinicius ele explica que não vai mais a enterros porque “prefere lembrar vivos aos seus mortos”. Eu não fiz essa escolha – não vou porque não posso. Penso que os velórios não são para os mortos, são para os vivos. Na minha família, é pra gente comer junto, chorar junto, rir junto – porque dá pra rir e chorar quase ao mesmo tempo, isso nunca foi problemas pra nós – e pra que juntos possamos começar a dar adeus para quem morreu. Juntos, com a certeza de que apesar da tristeza e das dificuldades decorrentes da morte, ainda estamos juntos e ainda estamos vivos – então é preciso e possível continuar.

Eu sei que eu não estou sozinha no mundo e que mesmo longe estamos juntos; mas eu não consigo sentir isso. A presença física, sem mediação, o abraço, o toque, essas coisas fazem uma falta incrível quando não se está bem. Então hoje tenho que criar minha própria cerimônia e realiza-la sozinha. Não tenho ideia de como fazer isso porque de alguma forma sinto como se ela não estivesse mais distante do que estava ontem. É como se uma parte minha, mesmo sabendo, mesmo chorando, sentisse que quando eu voltar pra Campo Grande ainda vou passar na casa dela, lá pelas 16:00, pra tomar um café e comer uma chipa. E que vou contar algumas das coisas que passei aqui, e que vamos rir e conversar como sempre.

Não vou ao seu enterro, suave amiga.

Já há muito não tínhamos uma relação de autoridade. Já há muito não éramos apenas tia-avó e sobrinha-neta; ela cuidava de mim, eu cuidava dela. Às vezes nenhuma das duas tinha condições para isso, mas tentávamos sempre. Estar em Campo Grande significava vê-la todos os dias; conversámos, brincávamos, fazíamos o possível para tentar agradar. Mas ela nem sempre era uma suave amiga. E eu também não. Mas o melhor é que a gente se entendia e quando isso não era possível a gente se respeitava e fazia o possível para ficarmos bem – por mais que isso estivesse mais difícil nos últimos tempos. Por isso parece que uma parte minha também morreu hoje, quando fiquei sabendo. O fato de ser uma morte anunciada não deixa o ato de receber a notícia mais fácil.

Fico lembrando de inúmeras, incontáveis cenas. Algumas, as mais tristes, querem tomar a frente; mas tento ignorá-las em busca daquelas mais leves. Como quando eu era criança. Ou quando eu tinha uns 12 ou 13 anos e ela tentava – quase sem nenhum sucesso – me ensinar a dançar, durante algumas festas de família. Ou então as incontáveis tardes em que ficávamos na varanda, em silencio, sentindo a brisa do final da tarde aplacar um pouco o calor. Ficávamos em silencio porque nada precisava ser dito, porque já tínhamos compartilhado tudo o que poderíamos, e então ficávamos apenas dividindo nossas solidões – e era bom isso, porque solidão acompanhada é uma coisa leve, eu acho que todo mundo tinha que ter a chance de passar por isso. Naqueles momentos viajamos dentro de nossos pensamentos e se estivéssemos a ponto de se perder era só olhar para frente e ter de volta a realidade: estávamos juntas para nos salvarmos de nós mesmos.

Lembro da ultima vez que a vi, ela me deu um abraço apertado me desejou sucesso, me disse que era pra eu ter fé que tudo ia dar certo. E me pediu pra mandar notícias. Quando me virei pra fechar o portão vi ela colocando o dedo na ponta do olho, pra não deixar aquela lágrima rolar, como ela sempre fazia. Eu já não conseguia conter as minhas. Lembro que falei com ela uns dez dias antes dela ser internada e mesmo com algumas confusões causadas pela doença ela mantinha o bom humor e o carinho que dava para sentir mesmo pelo telefone. Sabe, tive um pouco de medo de falar com ela nesse dia – achei que não ia fazer bem para mim porque ainda não tinha me acostumado por aqui e fiquei com receio de querer juntar minhas coisas e voltar. Mas não, foi doce. Nos últimos tempos tenho a impressão que tinha uma tristeza no fundo da alma dela e uma vontade de voltar pra casa e que isso não era bem um lugar, mas um tempo em que as coisas eram mais fáceis, as festas mais alegres, tinha mais pessoas para compartilhar a vida; mas esses fantasmas, essa tristeza, não pareciam estar lá na última vez que nos falamos. Ou estavam um pouco controlados, talvez em um breve momento de serenidade.

Não vou ao seu enterro, suave amiga.

Eu sei que ela odiaria ler isso. “Ninguém tem nada a ver com nosso problemas!”, ela sempre dizia. Uma vez eu estava bastante doente, tinha acabado de ter a primeira e incrivelmente dolorosa crise de vesícula e assim que ela me viu ela disse: “tudo bem ficar doente, mas precisava parecer doente?”; e eu entendi o que ela queria dizer. Não foi com maldade; foi com uma doçura e uma preocupação verdadeiras, de quem entende que mostrar-se frágil é a abertura de uma fresta na alma que talvez a gente não consiga voltar a fechar. Mas minha cerimônia de adeus precisava disso, escrever um pouco o que eu estou sentindo. Tornar mais viva e mais palpável as lembranças que agora parecem tão distantes.


Não vou ao seu enterro, suave amiga. 
E tampouco sei o que fazer agora. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Santificada seja a humanidade

Tenho com as Igrejas – o espaço físico delas – uma relação quase contraditória. Porque já não acredito na santidade delas mas é um ambiente que me conforta. As músicas, as palavras, os rituais.... essas coisas me dão uma sensação de estabilidade que encontro em poucos lugares, ainda que já não veja sentido neles. Eu sei o que fazer, o que dizer, porque fazer ou dizer e é quase como se pudesse controlar todas as situações e isso é incrivelmente confortante. Sem contar o fato de ter passado grande parte da minha infância em diversas Igrejas, então é quase como estar em casa.
Mas isso não faz com que eu frequente as Igrejas, muito pelo contrário. Já há muito tempo só vou a Igrejas em ocasiões especiais; mas acho curioso que ainda alguns ritos de quando era Católica. Por exemplo, como me comportar quando entrar em uma Igreja. “Você está vendo aquela luz acessa ali na frente?” – ainda hoje eu quase escuto minha mãe dizer – “Significa que Jesus está lá. E devemos nos ajoelhar e abaixar os olhos diante de Deus”. Aprendi isso quando era criança: ao entrar em uma Igreja, deve-se procurar o Sacrário e lembrar que diante de Deus se abaixam os olhos e se dobram os joelhos. Mesmo sem acreditar mais que há nas Igrejas um Santíssimo, ainda continuei abaixando a cabeça por um quase automatismo no qual parecia que meu corpo sabia exatamente o que deve ser feito e porque deve ser feito.
Ultimamente tenho entrado em muitas Igrejas. Como disse, ocasiões especiais: o que aqui significa também um senso estético e histórico: tem muitas Igrejas lindíssimas e antiguíssimas na Europa. Aqui em Madrid algumas das mais antigas ficam perto de onde vivo então volta e meia acabo entrando em uma delas. Sem contar que o fato de ser um lugar quente e com bancos é especialmente atrativo quando se sai para andar no inverno madrilenho (que não é o pior, mas é o suficiente pra me fazer ter certeza de que sou uma legítima e orgulhosa filha do calor que só o cerrado sabe ter). Talvez tenha abaixado a cabeça na maior parte das vezes que entrei em alguma delas: automatismo. Mas foi só quando visitei a catedral de Colônia, na Alemanha, que percebi que ainda fazia isso.
Não tenho palavras para descrever a beleza que vi nesse dia. Ainda dentro da estação de trem, quando comecei a entrevê-la, fiquei de boca aberta (literalmente). Lembro de alguém ter me dito que as Igrejas Medievais eram grandiosas para que o homem se sentissem pequenos diante de Deus. Sem dúvida, me senti um quase nada assim que eu vi: tantos detalhes, tanta grandiosidade, tanta beleza... tanta história – a Igreja começou a ser construída no século XIII! Os detalhes, as esculturas, os arcos que decoram o portal de entrada... e, quando entrei, a primeira coisa que fiz foi abaixar a cabeça.
Quando percebi que tinha feito isso, pensei “Lívia! Por que você tá abaixando a cabeça?” (eu brigo comigo mesma em pensamento às vezes. É um pouco idiota, mas necessário). Imediatamente levantei os olhos e o que vi é impossível transformar em palavras (inconsciente e arte, porque mesmo passeando a gente não para de criar elementos para fazer a tese). Quer dizer, eu podia tirar fotos e enviar para todos que conheço, mas nada chegaria perto do que é estar diante daquela construção.
Minha mãe não me ensinou só coisas sobre religião, ela me ensinou também o gosto pela poesia – e foi ela quem me presenteou com Perguntas de um Operário Letrado. Então logo comecei a pensar nas incontáveis vidas que passaram por lá – quantos senhores feudais e servos, quantas histórias de amor e de poder, quanta política, quantos turistas, crentes, descrentes, trabalhadores, ricos, pobres, quanta coisa aconteceu enquanto aquelas paredes estavam sendo erguidas! Quanta coisa mudou nesse período, quanta coisa aconteceu em volta daquele lugar que parece um refúgio contra o tempo! Foi quando deixei de abaixar a cabeça diante de Deus que ergui os olhos para o trabalho de milhares de homens e mulheres. Foi impossível não pensar em tantas pessoas que tiveram suas vidas encerradas para fazer aquele lugar que hoje parece ter sido esquecido por Chronos (quão pecado é fazer referência a um Deus grego em uma Igreja Católica?!). Comecei a pensar nas vidas que se fizeram em torno daquela obra, dos milhares de homens e mulheres que são parte daquelas paredes, cujo trabalho quase alcançou o céu, cujos dedos moldaram tantos e tão ricos detalhes, cujo sangue colore aqueles vitrais. Não foi Deus quem ergueu aquelas paredes, aquelas torres. Deus não carregou aquelas pedras e as moldou até que ficassem tão reais que parece que a qualquer momento podem sair andando.
Não estou – aqui – dizendo que Deus não existe. Você pode acreditar que foi em nome de Deus e com a benção Dele que aquilo tudo foi construído. Pode até pensar que se Ele não quisesse o Homem não teria feito. Mas, ainda que o homem tenha sido só a mediação entre o desejo de Deus e a obra Dele, Deus precisou do homem para fazer aquela Igreja. Deus precisa do homem para fazer o mundo.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Chego aos 30

Amanhã vai ser meu aniversário – em alguns minutos, na verdade. E aos 30 não se faz uma retrospectiva do ultimo ano: se dá uma mirada por toda a vida. O que consegui e o que perdi até agora. Os meus medos, as minhas coragens, os meus amores, os meus amigos, os meus planos... nos ultimos dias o tempo todo uma dessas coisas bateu na porta do meu coração, exigindo que eu pensasse calmamente no que aconteceu e no que isso significou, ou ainda significa.

Os medos. Alguns permanecem quase intocados: o medo de não conseguir, assim, no abstrato e encaixado em quase todas as situaçoes ainda é grande. Mas a coragem tem vencido ele. Ou ao menos andando ao lado dele, me mostrando que pode ser que eu não consiga, mas tudo bem: eu vou em frente. Mas há menos medo. Tem sido mais comum a sensação de que eu consigo enfrentar o que a vida me der: nos ultimos anos, quando a vida me desafiou eu acabei pagando pra ver e saí ganhando. Chego aos 30 com muito poucas certezas, mas aprendi que às vezes é preciso se perguntar “por que não?” e se não tiver uma resposta muito convincente simplemente arriscar.

Os meus amores. Penso que sou a rainha das declarações tardias: a mais emblemática foi uma vez que ele me disse que queria me ver, tinha gostado muito do que tinha acontecido entre a gente e eu fui concordando, pensando que a gente podia dar um jeito de contornar a distância... até que ele disse que não podia porque agora estava namorando. Fiquei extremamente irritada. Nesse dia tive certeza que declarações só devem ser feitas quando se quer saber do futuro: declarações do tipo “eu gostava de você, já não gosto” são de extremo mal gosto. Em mais de uma vez perdi o chão porque estava envolvida e levei um fora. Em mais de uma situação dei um fora porque não estava envolvida e, entre mortos e feridos, salvamo-nos todos: não tenho arrependimentos. Mas uma pessoa me disse que eu era sua alma gêmea. Eu estava para fazer uma grande mudança na minha vida, eu sabia o que isso significava, era (é) uma pessoa muito especial para mim e eu simplesmente tive medo. Tive tanto medo que fiz de conta que não entendi – é o único que às vezes me pego pensando no que poderia ter sido se eu tivesse feito outra coisa. A verdade é que no que tange aos sentimentos para mim é tudo muito intenso. E, como qualquer mulher solteira na minha idade, já passei por todo tipo de situação que me fez pensar em desistir disso. Mas tenho uma fé meio à la Poliana, então no fim das contas sempre seco a lágrima (sim, eu choro por homem, depois me odeio por isso e juro que nunca mais vou chorar) sacudo a poeira e vou adiante. E, nesse meio tempo, há sempre aqueles casos, casinhos, ocasiões, amores de transição... e, principalmente, os amigos para tornar a fossa suportável e aumentar a esperança de melhores amores.



Os meus amigos. Sou, sem a menor sombra de dúvida, uma pessoa privilegiada. Tenho amigos que nem mesmo a distancia separa. Conversas, vidas compartilhadas, problemas divididos, alegrias comemoradas... grandes amigos a quem confio a minha vida. Todas as palavras do mundo seriam poucas para demonstrar a importancia que eles tem na minha vida. Chego aos 30 sem poder ter o abraço de nenhum deles nessa data: mas não importa tanto porque todos os outros dias eles estão junto e logo estaremos também perto.

Os planos. Minha vida está absolutamente diferente do que imaginei que estaria. Mas não diferente-ruim. Sei exatamente onde estou e o que quero; e também o que fazer para chegar lá. Mas tambem tenho a serenidade de quem já sabe que os planos podem ser mudados no caminho e que a vida às vezes nos leva pra lados que nunca imaginamos estar... mas que também são explendidos. Não tenho absolutamente nada – nem carro, nem apartamento, nem sei onde vou estar morando daqui há seis meses. Também não tenho uma relação estável e embora ainda às vezes pense em ter filhos esse não é exatamente um plano. Mas isso não faz com que minha vida esteja ruim: eu estou em Madrid, conhecendo pessoas e lugares que nunca imaginei que conheceria, tendo experiencias que são inenarraveis. Crescendo e me conhecendo mais do que pensei que fosse possível. E, mais do que as respostas que pensava ter aos 20 anos, hoje sei que são as perguntas que realmente importam. Foi a dúvida que me trouxe até aqui. E por isso chego aos 30 simplesmente sabendo e sentindo que estou bem, que minha vida não está nos eixos porque a vida não é um trem para estar sempre em cima dos trilhos fazendo os caminhos de forma ordenada e segura. 


Chego aos 30 menos neurótica do que pensei que estaria. No fim das contas, é só um número: e eu e os números sempre nos demos bem.