Hoje eu fui à casa em que minha avó morava, antes de vir morar aqui em casa. E, engraçado, é uma casa cheia de lembranças e que acompanhou toda a minha vida. Bem, a história é mais ou menos assim: a casa é do meu tio (por parte de mãe), e minha avó Dorothy (materna) morava lá. Quando ela morreu, meu tio emprestou a casa pra meus avós João e Zeferina (paternos); isso foi entre 1994 e 1995. Em 1996 meu avô morreu, e minha avó continuou lá. Mas há alguns meses resolvemos que minha avó não poderia continuar sozinha e que seria melhor ela vir morar conosco (e vocês sabem que isso é um belo de um eufemismo). Mas, isso feito, meu tio vendeu a casa; e fui lá com ele para ver as últimas coisas que tinham que tirar, o que ia fazer e tal. Foi uma sensação muito estranha. Primeiro, porque a casa já tinha ares de abandono, porque com a mudança cresceu o mato e a sujeira se espalhou. E tinha aquele ar de passado, sabe?! Uma sensação de encerrar um capítulo da minha vida.
Algumas das minhas lembranças mais antigas são daquela casa. Algumas das mais queridas também. Como quando minha avó Dorothy fazia pastel aos domingos. E eu, meus irmãos e primos inventávamos refrigerantes, misturando dois ou mais sabores diferentes (e dávamos nomes, do tipo ‘Sprinta’, quando era Sprite com Fanta. E ainda tomávamos isso). Quando dormíamos lá, e acordávamos cedíssimo querendo jogar queimada. Éramos cinco: eu, o Igor, a Elise, o Danilo e o Bruno. Ainda hoje nós cinco somos unidos; acho que isso vem dessa época, quando ainda nos encontrávamos todos os finais de semana e nos divertíamos muito, simplesmente sendo crianças. Lembro de colher quebra-pedra pra minha avó tomar chimarrão. Dela tomando chimarrão com minha mãe, das duas conversando na varanda enquanto assistia televisão na sala.
A primeira vez que cozinhei foi lá – minha avó me ensinou a fazer arroz. E em um aniversário meu que comemorei lá eu ganhei dos meus tios uma máquina de costura de brinquedo que usei acho que por uns cinco anos, pra fazer roupas pras minhas Barbies (coitadas, minhas Barbies sofreram porque eu sempre fui uma péssima estilista!) Lembro que minha avó dizia que eu tinha um coração de ouro. E que a gente sempre andava de bicicleta no pátio da frente; eu era uma criança com uma imaginação muito fértil e uma vez eu e minha irmã éramos princesas indo pra um baile, e então eu passei numa possa de água com a bicicleta. Não foi uma gota em mim; mas quando minha avó se deu conta eu estava dentro de casa, penteando meu cabelo; ela me perguntou o que eu tava fazendo e eu respondi que o cavalo tinha me derrubado em uma possa de lama e eu tinha que me arrumar de novo pro baile. Lembro da risada dela nesse dia. E que ela usava dentadura e de vez em quando tirava metade pra fora e ficava fazendo careta. Era horrível.
Lá tinham 3 árvores: uma goiabeira, uma mangueira e um pé de fruta do conde. As duas primeiras ficavam no fundo, e a última na frente; minha avó dizia que a goiabeira era da minha irmã, a mangueira do meu irmão, e o pé de conde era meu. Eu odeio fruta do conde. Mas adorava a idéia da única árvore da frente ser minha, eu dizia que a frente toda era e então eu podia decidir quem entrava e quem não entrava. Eu subia na árvore e ficava lá um tempão, que provavelmente não passava de alguns minutos, mas como eu era criança pareciam horas e mais horas. Minha avó tinha um amigo, o Eduardo. Ele dizia que ia se casar com ela e a gente ia ter que chamá-lo de vô Eduardo. E ele parecia ser tão incrivelmente bravo e tinha uma chinela de couro que ameaçava usá-la pra bater na gente (principalmente no meu irmão). Nós cinco inventávamos planos mirabolantes pra impedir o casamento.
Aí, minha avó morreu. Lembro da primeira vez que fui lá depois, acho que no dia seguinte ou após alguns poucos dias, com minha irmã e minha mãe. Lembro da Paquita, a cadela dela, ficar correndo pela casa e chorando. E depois, quando começamos a arrumar a casa pra meus avós irem pra lá. Pintando, tirando a bagunça do quartinho, desfazendo o canil dos cachorros. Pendurando um balanço de pneu que tinha na casa antiga dos meus avós. E depois, quando mudaram pra lá, eu passava todas as tardes naquela casa. Foi um período difícil esse. Acostumar com a morte da minha avó, com a mudança de escola e de período (foi quando comecei a estudar de manhã), com alguns outros problemas. E, um tempo depois, com a adolescência: o começo dela, algumas das tardes repletas de sonhos e medos e dramas foram naquela casa. Foi lá que ganhei meu primeiro sutiã. Lembro bem do dia, embora seja demais detalhá-lo aqui. Também foi lá que meu avô morreu, ao lado do meu pai e da minha avó.
E por muito tempo eu ainda continuava a subir nas árvores e me esconder. Era uma sensação maravilhosa, subir o mais alto que eu conseguia e ficar olhando por cima das casas. Uma sensação de liberdade. Mas, a essa altura, só tinha a mangueira; minha avó resolveu que queria cortar as outras árvores. Há alguns poucos anos ela conseguiu que cortasse também a mangueira, mas aí eu já não subia em árvores – embora ainda assim tenha doído um pouco vê-la derrotada, espalhada por todo o quintal, reduzida a um monte de galhos e folhas.
Depois de um tempo parei de passar as tardes lá; mas foi lá que eu arrumei uma mesa com todos os livros e apostilas para estudar pro vestibular, o que fiz por uma ou duas semanas. Diversas vezes me refugiava lá, pra estudar, quando já estava na faculdade e até no mestrado – eu gostava do silêncio. E o engraçado é que se antes da vó Dorothy morrer aquela casa simbolizava diversão, ela passou a simbolizar solidão; o que se intensificou quando meu avô morreu. Uma solidão nem sempre triste, é verdade. Às vezes era puro isolamento. Às vezes nostalgia.
Hoje sei cozinhar mais do que arroz, não uso nenhuma máquina de costurar, bebo coisas mais estranhas do que refrigerantes misturados. Já faz um tempo que não subo em árvores, embora ainda tenha aquela mesma sensação quando estou em um lugar alto qualquer. Já sei que o ‘vô’ Eduardo é uma pessoa maravilhosa que se divertida brincando de ser bravo conosco. Compro meus próprios sutiãs, acostumei a estudar sem precisar de silêncio, aprendi que não se precisa de um lugar pra se cultivar a solidão. Passei pela adolescência e hoje acho que foi mais fácil do que está sendo se tornar adulta. Tenho outros sonhos, medos e ilusões. Perdi outras pessoas e percebi que não se acostuma com a morte, se aprende a viver com a ausência. E foi com aperto no coração fui lá ontem e me deparei com toda aquela poeira e abandono. Mas sabe, não foi uma sensação ruim. Quer dizer, é sempre difícil ver como as coisas mudam; mas nada do que vivi naquela casa vai ficar naquela casa. Está tudo aqui, dentro de mim. Tudo o que vivi lá fez de mim o que sou. E se a venda dessa casa é o fim de um capítulo...também é o início de outro. E sei que há ainda muitas lembranças a se construir, em outras casas, em outros lugares - mas sempre carregando essa nostalgia, essa saudade. Todos os capítulos da minha vida são repletos destes sentimentos.
Nossa, Lívia! Muito bonito! Incrível como as lembranças da infância são semelhantes... Mesmo tendo passado a minha infância longe, tenho muitas recordações parecidas com a sua!
ResponderExcluirGosto muito da sua forma de escrever... Eu consigo visualizar cada cena... Lindo mesmo! =)
Obrigada Alice!!!
ResponderExcluirInfância é uma época que parece tão única, mas ao mesmo tempo tão comum, né?! Ainda bem que ainda somos de uma época em que era muito mais permitido ser criança!!!!