Acontece
que eu sou muito mais Caetano e você prefere o Chico, baby. Somos puro
rock’in’roll, mas você insiste no melódico britânico enquanto eu fico com a
dureza do americano. Você gosta do jazz cantado e eu acho que a beleza está nos
arranjos improvisados, sempre atrapalhados pela voz, seja de quem for. Você
gosta da literatura fantástica de Márquez, e eu fico com a dilacerante
realidade de Llosa. Seus poemas são de Vinícius e os meus de Quintana.
Concordamos com Neruda; mas eu pelos poemas de amor e canções desesperadas,
você pela crítica ritmada da canção da América.
Olhando
de fora somos iguais. Mas só nós sabemos como é difícil se fazer entender.
***
Quando
você acordar, não se esqueça de pegar suas roupas e também as coisas que
ficaram na sala. Se puder, leve até seu cheiro. Tente não deixar seu perfume
esparramado pela casa, me lembrando de tudo o que aconteceu, do que dissemos,
do que sentimos. Não gaste meus batons com recados melosos e difíceis de limpar
no espelho, nem esqueça propositalmente algum objeto que servirá como uma boa
desculpa. Não deixe bilhetes, não retire nenhuma flor do lugar como se as
deixasse para mim: as flores que tem na casa já são todas minhas, não preciso
recebê-las novamente; tampouco quero novas, minha casa não é um cemitério para
ter tantas flores juntas. Se gostou dessa noite guarde-a com carinho num canto
quente do seu coração. Se não gostou será mais fácil, esqueça-a ou pense nela
com um desdém de quem nem se lembra exatamente do que aconteceu. Não cumpra as
promessas de me ligar, nem leve a sério as juras ditas e ouvidas, foram apenas
força do hábito.
Faça tudo
o que eu peço e não precisaremos perder nosso tempo com decisões e angústias.
Faça isso porque me apaixono muito fácil. E não posso correr esse risco agora.
***
Do baú de
palavras guardado em seu corpo, ela sempre escolhia aquelas que achava que iam
lhe agradar mais. Eram sempre palavras doces, cuidadosamente organizadas, e
pensadas para que ele se deliciasse ao ouvir. Limpava-as, tirava as arestas,
arrumava os detalhes. Evitava os detalhes por achá-los tristes; valia-se dos
adjetivos por tomá-los como coloridos. Escondia em cada palavra um segredo: um
sorriso que as inundava, deixava-as mais brilhante, mais leves. Caprichava nas
entrelinhas, nos duplos sentidos, nas reticências... adorava as reticências
porque elas deixam tudo aberto, mil possibilidades, uma melodia à espera de
qualquer canção.
Era tudo
tão pensado, tão planejado, tão escolhido e deixava tantas possibilidades! Ela
só não sabia que ele ficava apenas com o que havia sido realmente escrito. Ele
via as palavras duras, nuas, secas.
Ele via
as palavras sem nenhum dos sentimentos que desejava encontrar.
***
Tenho a
impressão que te vi um dia desses. Você estava mais magro, e com aquele mesmo ar
distante de quem nunca está junto com o próprio corpo. Tinha o mesmo cabelo
preto (com o princípio de calvície que você tanto odeia), o mesmo porte
atlético, a mesma mania de parar com as mãos cruzadas atrás do corpo. Apesar de
tanto tempo, apesar de ser um lugar tão diferente, aquela cena parecia a
repetição de tantas cenas parecidas que representamos naquela época de
encontros casuais. Quando te vi percebi que era tudo muito igual ao que sempre
tinha sido: eu e você caminhando, um em direção ao outro; você distraído, eu
pensando, você olhando pra baixo, eu olhando pra dentro, algumas pessoas que
não importavam em volta, a casualidade, enfim, tudo. A única coisa diferente
naquele momento era eu. Eu que não ansiava mais por aquele encontro e que não
senti meu coração disparar quando te vi.
Naqueles
longos segundos da eminência do encontro pensei no que dizer, no que fazer,
pensei até no que devia pensar. E foi num suspiro de certeza que percebi que o
melhor a fazer era dobrar a esquina e fazer você passar pelas minhas costas sem
notar que eu tinha cruzado seu caminho.
Tem
algumas coincidências que a gente não pode correr o risco de querer chamar de
destino